sexta-feira, 14 de março de 2014

Grandes mulheres e seus homenzinhos

Contam por aí que James Joyce era um sujeito arrogante, extremamente egoísta, que se utilizava da boa vontade das pessoas à sua volta para que lhe servissem em todas as suas necessidades, inclusive financeiras. Embora nunca tivesse um puto no bolso, não se importava em gastar o dinheiro alheio em caríssimas refeições, generosas gorjetas, apartamentos confortabilíssimos e viagens de férias. Mesmo com reservas aos automóveis e seus possuidores, não deixava de ir para cima e para baixo de táxi. Portava-se como uma espécie de messias com seus apóstolos, um sujeito perseguido por ser genial e que demandava constante apoio para cumprir sua missão na literatura. Não por mero acaso foram doze os escritores que contribuíram para divulgar, por meio de ensaios críticos, o livro que viria a ser intitulado Finnegans Wake, no volume "Our exagmination round his factification for incamination of Work in Progress".
O escritor irlandês tinha sérios problemas com álcool e contam que bebia todas as noites até seu corpo estar anestesiado ao ponto de não sentir que o cigarro queimava seus dedos. Joyce deixou de frequentar encontros e reuniões diurnas, pois era muito difícil para ele manter-se sóbrio se houvesse bebida disponível. Comprometeu-se, então, a expor-se ao álcool apenas depois das cinco da tarde.
Já nos últimos anos de sua vida, atormentado pela ideia de perseguição, pela falta de visão que atrapalhava o desenvolvimento de seu trabalho, pela constante necessidade de dinheiro e pela doença psiquiátrica sofrida pela sua filha Lucia, Joyce desenvolveu um certo grau de misoginia, o que pode soar como contrassenso se olharmos para as pessoas que o ajudaram a ser uma das figuras mais importantes da literatura universal.
Para que pudesse viver de seu trabalho como escritor, Joyce, que sempre teve dificuldade em publicar seus textos, até por conta de seu caráter vanguardista, dependia da ajuda financeira da senhorita Harriet Weaver. Encantada com o talento do artista, ela se comprometeu a auxiliá-lo para que sua obra fosse desenvolvida.
No entanto, mais do que o suporte financeiro, o escritor contou com ajuda em todos os outros campos de sua vida de uma outra mulher, que tomava conta de sua correspondência, de seus negócios pessoais, de adiantamento de royalties e empréstimos para as necessidades da família, angariava intelectuais e literatos para as resenhas críticas e para divulgação da obra de Joyce e, acima de tudo, foi responsável pela publicação do principal livro do irlandês, Ulysses. Trata-se da senhora Sylvia Beach.
É possível afirmar que sem Sylvia Beach, que escrevera apenas um livro de memórias ao longa da vida, a história da literatura do século XX seria outra, não só por causa da publicação de Ulysses, mas também pelo número significativo de associações criativas entre a literatura francesa e anglo-americana a que ela e sua companheira, Adrianne Monnier, fomentaram em suas livrarias na rue de l'Odeon em Paris do entre-guerras.
Nascida nos Estados Unidos, filha do pastor presbiteriano Sylvester Beach, Sylvia emigrou para Europa, vindo a fundar a célebre livraria Shakespeare & Company em Paris. O nome sobrevive nas proximidades do marco zero da capital francesa, nomeando, agora, a antiga livraria Mistral, de George Whitman. 
Sylvia Beach viu sua mãe suicidar-se em uma visita a Paris e manteve a informação sobre a razão de sua morte em segredo, a fim de preservar sua progenitora dos julgamentos da família; sua companheira, Adrianne Monnier, também tirou a própria vida e foi tratada com a mesma dignidade por Sylvia; um dos seus melhores amigos, Ernest Hemingway, também foi um suicida. 
Durante a ocupação nazista, um oficial alemão demandou, na Shakespeare & Company, que lhe fosse entregue o livro Finnegans Wake. Sylvia disse que a obra não estava a venda e que era seu único exemplar. O oficial disse que voltaria mais tarde, não só para o livro de Joyce, mas para todas as obras nas prateleiras. Com ajuda de sua assistente e de Adrianne, Sylvia encaixotou toda a livraria, escondendo o acervo no quarto andar do prédio que abrigava o estabelecimento. Foi o fim da história da Shakespeare & Company, que não mais reabriu. O oficial nazista ficou sem seu Finnegans Wake
Por seu legado como pessoa e pelo encorajamento às letras, homenageamos Sylvia Beach, nesta data que seria seu centésimo vigésimo sétimo aniversário.

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