segunda-feira, 6 de abril de 2020

Arqueologia do vaso sanitário

O ambiente aconchegante, composto por móveis de madeira escura com detalhes dourados que harmonizam com o carpete vermelho, acomoda os cavalheiros que, bem vestidos, aspiram, bebem, fumam e sorriem. 
"O senhor saberia me informar onde fica o reservado?"
"Claro. O senhor pretenderia utilizar um vaso sanitário?".
"Como?"
"Há de se perguntar, nestas situações, o que é, então, um vaso sanitário, uma privada?"
A surpresa com a pergunta é tamanha que o cavalheiro necessitado sorri e esboça uma resposta, esperando que ela fosse a chave que lhe abrisse o caminho até o seu destino.
"Ahn... é um artefato para auxiliar os subprodutos da digestão humana a atingirem o sistema de esgoto, suponho. Com licença, sim?".
O interlocutor posiciona-se entre o necessitado e o caminho até o banheiro.  
"Vamos suspender, por um instante, a unidade a que convencionamos chamar de privada. Reconheço como poucos a utilidade desta unidade: o alívio que proporciona é diretamente proporcional ao aperto que a homeostase provoca quando dela nos aproximamos. Mas o que temos, se abrirmos mão da unidade, não é um conjunto mais ou menos disforme de peças muito diversas entre si? Um recipiente côncavo, composto de porcelana, em regra dotado de um assento, acoplado a um sistema de circulação de fluídos, possibilitando que elementos líquidos ou sólidos sejam ejetados do ambiente doméstico ou de trabalho?
Esta dispersão de elementos apenas pode ser identificado como privada em certas circunstâncias pré-definidas, a partir da observação de determinadas regras que a permitem identificar como tal. Repare que a emergência deste objeto -  'privada' - se dá em função de um conjunto de relações complexas, em que se incluem processos sociais, econômicos, sistemas de normas, etc., e não preexiste à sua descoberta; ou seja, as relações que permitem a criação de um objeto não são metadiscursivas e nem estão no texto, ou no ato de fala, como forma acabada do discurso; compõem, na verdade, os limites do próprio discurso, como sistema pré-terminal, tal qual a dor de barriga que antecede a diarreia".
"Meu senhor, por gentileza, apenas me aponte o caminho até o banheiro. É esta porta atrás do senhor, não é?" 
"Eu poderia, sim, dizer que esta porta atrás de mim dá acesso ao se destino. Que utilidade isso teria, contudo? Em nada pode ser útil a indicação do caminho ao banheiro a quem não conhece, como o senhor, o que é uma privada. Provavelmente, terminar-se-ia por zanzar por estes corredores até que se apreendessem os elementos de uma formação discursiva que fizesse 'ver' a privada. Fora destas condições, a privada, simplesmente, não existe, e é inencontrável o que é inexistente".
Ao que responde, já impaciente, o sujeito necessitado:
"A realidade da privada, senti-la-ia fora de qualquer contexto discursivo, precisamente em seu assento gelando meu traseiro. No caso, entretanto, busco apenas o mictório, cuja existência posso, sem prejuízo, apenas imaginar a alguns centímetros dos meus pés".
Ambos riem divertidamente e trocam cartões de visita. 

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