terça-feira, 28 de abril de 2015

Quanto tempo fiquei?

Como toda pesquisa que pretenda reconstituir um evento do passado, não há precisão absoluta, mas não foi difícil estipular uma data. Bastou juntar o que sobraram das lembranças com um pequeno trabalho de arqueologia doméstica e o resultado foi 28 de abril. 
Era quinta-feira, véspera do seminário sobre universidades medievais na disciplina de História do Direito no segundo ano da graduação. O Monier me telefonou, estava livre naquela noite e daria para levar as coisas no seu carro. "Quer mudar hoje?", ele me perguntou. Queria, sim. 
O Kadettão estacionou em frente ao prédio em que morava no apartamento de minha tia. Abracei-a em gratidão e despedida. Ir embora, contudo, animava-me, e suas lágrimas, mesmo que me comovessem, não me detiveram. 
Deitamos o banco traseiro do carro, convertendo aquele espaço em um porta-malas que comportou toda minha mudança: um colchão, uma mala de roupas, cópias de textos e alguns livros. 
Com certeza era uma quinta-feira, como eu disse, véspera do seminário sobre universidades medievais. Não encontrei entre, os meus arquivos, o programa de História do Direito daquele ano de 2005,  quando fui aluno da disciplina  - o aluno não liga muito para esta papelada com quê não sabe lidar. Encontrei, por outro lado, o dos dois anos seguintes, 2006 e 2007, em que já era monitor. Até 2008, a disciplina seguiu um mesmo padrão de seis seminários por semestre, sempre às sextas-feiras pela manhã. Em 2006 e 2007, o referido seminário sobre universidades aconteceu na última semana de abril, nos dias 28 e 27, respectivamente. Deste modo, há grande probabilidade de que, em 2005, ele tenha ocorrido no dia 29 e que sua véspera, o dia da mudança, tenha sido dia 28, a quinta-feira.
Eis aqui um outro aspecto que se deixa de fora das informações passadas aos leitores nas pesquisas históricas: a arbitrariedade. Poderíamos marcar este aniversário em muitas outras datas, como o dia em que resolvemos alugar o apartamento, o dia em que assinamos o contrato, o dia em que terminamos de mobiliar... ok, não terminamos de mobiliar até hoje, mas poderia ser o dia em que Monier, finalmente, se mudou, algumas semanas depois de mim. Por que, então, marcar no dia 28 de abril de 2005 a data de nossa ocupação do apartamento da Maria Paula? Bem, poderíamos dedicar uns dois ou três parágrafos para explicar, mas, no fundo, a razão é que prefiro assim. A data da minha mudança, indo sozinho em um primeiro momento, é extremamente relevante para minha história pessoal. 
Lembro-me bem de ajeitar as coisas, com a ajuda do Monier. Minha cama já estava lá montada, havia dois sofás azuis na sala, um de três e outro de dois lugares. Havia, também, uma fruteira improvisada como rack para televisão, mas não havia, ainda uma televisão em cima dela. Na cozinha, uma geladeira e um fogão. No então futuro quarto do Monier, um ferro de passar e alguns outros utensílios. 
Naquela noite, deitei-me na cama sem os óculos e com os olhos abertos procurando medir o nível de luminosidade e de barulho no quarto. Havia muitos ruídos da rua, como era de se esperar, mas nada aflitivo. A luminosidade era grande. Não havia cortinas e a luz emanada de um poste projetava-se na parede por entre as frestas da janela formando uma interessante figura finamente lapidada pela miopia e pelo astigmatismo. Por muitos anos, não olhei esta projeção com os óculos para não estragar a imagem que dela tinha sem os mesmos.
No primeiro final de semana, tratei de comprar algumas coisas para a casa: pão de forma, queijo, sabonete, shampoo e um rodinho para escorrer a água da pia. O Monier, é claro, também fez as suas compras e, entre os bens adquiridos por ele, estava um segundo rodinho de pia. Anos mais tarde, às vésperas de sua partida do apartamento, comentei com ele, portando ares nostálgicos, de como fui responsável ao comprar aquele rodinho, que resistira intacto até aquela data. Fui então repreendido: "não, não. Fui eu quem comprou o rodinho". O episódio gerou em mim a absoluta desconfiança sobre o bom estado de minhas memórias. Tinha certeza da aquisição e lembrava com orgulho a madura decisão de comprar objeto tão caro à organização doméstica. Demoraram alguns dias para perceber que, na realidade, havia dois rodinhos na pia. A duplicidade estava ali por anos e eu, certamente, só notei porque pus em xeque minha sanidade mental. Minha desculpa é que eles eram praticamente idênticos e isso os tornava plenamente fungíveis e inaptos à distinção: um deles era de plástico laranja e, o outro, de alumínio. 
A distração, aliás, foi marcante durante todo este tempo e temos de agradecer à providência por o prédio não ter sido incendiado. Queimamos e derretemos no fogão toda sorte de panelas, bules, cafeteiras, sanduicheiras, chaleiras e afins. Lembro bem de, empolgado com a leitura ou com o vídeo-game, sentir cheiro de queimado, perguntar-me "de onde será que vem isso?" e, então, deparar-me com uma chaleira já sem o cabo e lamentar por ter perdido a água do chá para a atmosfera.

* * *

Em dez anos, o apartamento assumiu papéis diferentes. De república, em que alegre e frequentemente se recebiam os amigos, transformou-se na casa de um solitário professor, que cultivava severamente sua solidão. Hoje, encontra-se habitado por um simpático casal e serve como base de operações para incursões ao mundo maravilhoso de Ós. 
Apesar destas transformações de caráter ao longo da última década, na essência, tudo continua mais ou menos igual aqui dentro. O que realmente mudou foi o entorno. Claro que o centro de São Paulo continua muito parecido com o que tem sido, mas os convivas que moravam a uma, duas quadras, ou uma, duas estações de metrô, separaram-se, casaram-se, aprovaram-se em concursos, mudaram-se. De um jeito meio improvisado, enquanto eles foram, eu fiquei. 
Outro dia, estava no centro da sala e me dei conta de que, com exceção da cortina e da mesa, a disposição dos móveis e até de alguns documentos guardados, é, rigorosamente, a mesma desde o primeiro dia em que estivéssemos aqui. Não troquei o sofá, não pintei a parede, não reafixei os tacos no piso, não comprei novas estantes para livros, demorei anos para trocar a cama quebrada - e só troquei por ter ganhado uma nova -, não coloquei armários na cozinha ou cortinas nos quartos porque sabia-se-lá quando iria embora daqui. Uma república, afinal, é para ser temporária. E, no fim das contas, neste não saber até quando fico, fiquei por mais tempo do que tinha ficado em qualquer outra casa ao longo da vida. 
O improviso de estar sem saber se permaneço não é apenas como habito este apartamento. É o modo mesmo como me insiro no mundo, em uma passagem permanente por um caminho que não sei se trilho e não sei aonde vai dar.  

6 comentários:

  1. la na maria paula, bem atrás do onze, la no LI, aprendi direito...

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    1. Putz, faltou a menção à música! Merece um texto à parte.

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  2. Como morador de república nos velhos tempos em Rib's devo dizer que a área 51 não foi uma república no strictu (ahá) sensu. Hoje, Renatão não tem ímpetos (inconsciente ou não) de matar nenhum antigo habitante da dita. Ou seja, o sueco.
    Eu, se encontrar antigos moradores da área 252 (rua Carlos Gomes em Rib's) precisarei de um bom advogado.
    Não sei a origem do nome república. Mas, a maioria é uma merda.

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  3. IIIIh! Luiz, vou publicar anonimamente para não ser identificado e responsabilizado.
    Há boatos de que surgem esse ímpetos com meia dúzia de gols e algumas frases soltas. O elemento cerne da República, então, é a provocação.
    Faltou mencionar que eu ganhei o quarto maior no par ou ímpar, abrindo um grande período de goleadas. Não me recordo se teve recurso, digo, nêga. Ou se nessa ocasião a questão foi resolvida de primeira.

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    1. Pois é... também não lembro se teve nêga, mas lembro de ter tido provocação e até replay do momento da tirada de par ou ímpar.

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  4. O que importa é que, mesmo sem cortinas, sem decoração alguma, a área 51 faz parte da sua história e sempre lhe trará boas recordações!

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