sexta-feira, 17 de abril de 2015

INTEMPESTIVO

João era um sujeito intempestivo.  No pior sentido da palavra. Por qualquer motivo explodia em impropérios e, em algumas ocasiões em agressões físicas. Seus amigos sabiam que precisavam tomar cuidado ao conversar com ele. 
Mas, quando tudo começou?
O pai de João, até onde ele lembrava, era do mesmo jeito. Tinha lembranças do pai chegando em casa falando uma língua estranha  e hálito forte de bebida alcoólica. Por qualquer motivo desferia socos e pontapés. Em tudo que estivesse na frente.
Sua mãe era uma mulher aterrorizada e que vivia em função dos filhos, João e mais dois irmãos. 
Ele lembra que ela era possuída pela expectativa da chegada de seu pai e suas atitudes explosivas.
A casa onde moravam respirava o terror que seu pai impunha com sua presença. João, o mais velho, não entendia o que se passava, e era absolutamente impotente em proteger quem amava. Seu pai era um oponente mais poderoso. Fisicamente e espiritualmente. O terror em seus olhos era petrificante.
Mas, em alguns raros dias, tudo se dissipava. O pai de João levava os filhos para brincar num enorme terreno baldio nas proximidades da casa. Normalmente num domingo.
Enquanto sua mãe frequentava a igreja, João e o resto da família se divertiam. A lembrança era do pai rindo, brincando e  bebendo algo de uma garrafa escura. Depois de várias garrafas desandava a falar mal de sua mãe.
João passou a entender que o problema era a mãe.
Um dia seu pai não voltou do trabalho. Depois de algum tempo ficou claro que ele abandonou a família. Foi o que sua mãe disse. 
João culpou a mãe. Aquele sujeito que chegava suado, desferindo impropérios contra tudo e todos não encontrava em sua mãe o bálsamo a curar suas chagas.
Assim que arranjou um emprego, de aprendiz de pintor de automóveis, João deixou a casa.
Sua família passava por enormes dificuldades uma vez que sua mãe abandonou a profissão para cuidar da família. Nunca soube qual era a profissão dela. Viviam, então, com a ajuda de parentes e amigos. Seus irmãos mais novos não tinham, ainda, discernimento para entender o que se passava.
Quando deu a notícia da partida sua mãe se desesperou. Como o filho que mais sofreu com as atitudes de um pai bêbado abandona mãe e irmãos?
João ficou irritado com o choro de quem julgava culpada por todo os sofrimento. Afinal, seu pai quando longe da mãe era outro homem. Alegre, brincalhão, contador de histórias, Bastava beber daquela garrafa escura para lembrar, aos filhos, de quem o fazia infeliz.
Deu as costas. Como seu pai.
Os anos passaram e João apaixonou-se por Beatriz. Colega de trabalho. Enquanto ele era pintor sênior, ela era a telefonista chefe. 
Casaram.
Mas, João herdou a intempestividade do pai. Já bebia da garrafa escura desde sempre. O problema começou quando Beatriz passou a reclamar da situação estagnada em que viviam. Financeiramente precisavam dar um passo para o futuro.
E, quando as lamúrias aconteciam, as lembranças afloravam como uma explosão de sentimentos. Fazia tempo que evitava contatos com a família. Sabia que sua mãe casara-se novamente  e que seus irmãos não sentiam sua falta. Não havia convites para aniversários ou festas de fim de ano. Tal fato o irritava ainda mais. E, a culpa era de quem havia separado a família. Sua mãe. A mulher.
A ironia. 
Nunca mais soube do pai, que não os procurou, e, nem foi procurado.
Por tudo isto, logo sua união com Beatriz tornou-se um inferno.
João chegava bêbado, culpando a mãe por suas supostas desgraças, e jogando em sua mulher a culpa pela situação em que se encontravam. Mesmo a mais corriqueira.
Numa noite os terrores de João desembocaram em agressão física. Beatriz sangrou. Chorou por desconhecer seu agressor, que amava, e os motivos, profundos, pelos quais sofreu.
Mas, Beatriz não era uma mulher qualquer.
Cresceu em uma família em que, seus pais faziam questão, respeitava o próximo. E quanto mais próximo mais respeito. 
Beatriz apaixonou-se por João e logo descobriu seus fantasmas. Mas, pensou que poderia ajudar seu amado a superar os traumas de infância.
Com sua impotência em revidar as agressões, cada vez mais graves, planejou.
João havia comprado uma arma. Dizia que precisava se defender daqueles loucos do bar que frequentava diariamente antes de ir para casa.
Mas, não a portava. Deixava na gaveta do criado mudo.
A segunda agressão física foi severa a ponto dela pedir para não ir trabalhar no dia seguinte. Alegou uma dor de cabeça fortíssima. 
No dia seguinte, deitada na cama de casal que havia presenciado tantas juras de amor e eternidade na união, Beatriz ouviu seu amado abrir a porta com barulho que, sabia, afetado pela bebida.
João, sem falar nada, foi até a cozinha onde normalmente sua mulher o esperava com o jantar pronto. A luz apagada e a mesa vazia o enfureceu. 
Foi até ao quarto. Os olhos esbugalhados. 
Perguntou, aos berros, o que se passava. O que era feito da comida que não estava na mesa.
Chamou Beatriz, a menina de família humilde mas, criada para impor respeito, de vagabunda. Disse que ela precisava apanhar mais para aprender seu lugar.
Beatriz estava coberta pelo lençol. Sua expressão era de absoluta abstração. Parecia divagar em sua vida anterior até conhecer João e seu engano sobre ele.
Seu corpo ostentava marcas da agressão do dia anterior.
Quando João avançou Beatriz atirou. Empunhava a arma debaixo do lençol. Não sabia que era tão fácil puxar o gatilho. Se livrar do problema.
Quando João caiu, com um único tiro certeiro, não teve pudor em sorrir.
Foi fácil resolver.
Foi fácil também para seu advogado a absolver.
Foi fácil conseguir outra arma. 
Seu atual companheiro já sabe que, se bater, levou.
Beatriz sempre ostenta um sorriso enigmático. 
Nós sabemos porquê.

Um comentário:

  1. Muito bem, eu confesso. Fui eu quem deixou "O cobrador" no criado mudo do meu pai. Deu no que deu.. hahahaha.

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