quinta-feira, 7 de maio de 2015

O ENGANO

                             O delegado Francisco, ninguém o chama de Chico porque ele detesta o Chico "comunista", estava sentado em frente ao homem. Sua mesa de trabalho era bem diferente daquela em que passava a maior parte do tempo na delegacia desta pacata cidade do interior. A de trabalho é limpa de qualquer objeto que chame ou desvie a atenção do inquerido. A mesa de contemplação, como diz, é atulhada de pequenos objetos recolhidos ao longo dos anos de polícia. Nada de retratos de família. "Polícia não tem família", diz.
                                  Ao seu lado direito a velha máquina de escrever e o entediado escrivão, e seus parcos cabelos brancos, com as mãos em posição de batucar as teclas. Aquilo o irritava já que o escrivão, Souza era como gosta de ser chamado, lembra outra máquina. Porém, nos interrogatórios emite uns grunhidos quando algo não se encaixa nos fatos relatados. Mais irritação.
                                   No lado esquerdo senta Marcão, o detetive faz-tudo. Senta é o modo de dizer. Marcão, que mede 1,70 m passa a impressão de que vai no pular no pescoço de alguém. Sempre com o corpo para a frente. O delegado Francisco o imagina como um atleta de cem metros rasos esperando o tiro de partida. Tiro, ironia. Marcão, é como já disse o faz tudo da delegacia. O cara que vai para o campo como um cão sabujo a farejar pistas. Certo que está mais para um vira lata a distribuir pancadas em todos os envolvidos. Alguns casos esperam suspeitos terem alta do hospital para a continuidade. Sempre que passa alguma ordem ao sabujo entremeava com "vá com calma. Me chama se estiver difícil". Mas, o vira lata que mora dentro dele,  muitas vezes é mais forte.
                                Delegado Francisco diz que preferiu esta cidade porque estava cansado da agitação da cidade grande e seus rumos incontroláveis. Na verdade, não dançou conforme a música, se me entendem, e foi verdadeiramente posto de lado na hierarquia da polícia.   
                                   Nesta tarde, todo o contingente da delegacia, às voltas com o primeiro caso de homicídio em mais de quinze anos. Pior. Os envolvidos não são da cidade. "Que porra esses merdas vieram fazer"? Pensava enquanto analisa o sujeito sentado, encolhido, acuado mesmo, na cadeira em frente.
                                 Marcão tinha uma lógica para aquela cena. Dizia que os do lado "de cá" são do bem. Os do lado "de lá" são do mal. Essa lógica simplista é mais uma fonte de irritação para o delegado Francisco. Nunca sabia se havia ironia ou se o detetive era curto das idéias. Lembra que, em certa ocasião, o vira lata deu uns sopapos em uma mulher que havia apanhado do marido. Ele, o marido, dizia que ela "dava bola" para o açougueiro. Era muita carne para pouco dinheiro. Ou seja, o açougueiro comia a mulher dele em troca de bife. Havia uma certa coerência. Enfim, perguntou ao detetive que porra havia feito. A mulher havia acabado de sair do hospital e voltou depois de descrever os fatos para seu subordinado. Marcão, que é um machão convicto, disse que ela ficou nervosa com a conversa e levou uns sopapos para se acalmar. "Aquela piranha", complementou.
                                  O, digamos, suspeito está acompanhado de um jovem advogado assustado com a expressão corporal de Marcão. Há uma mulher, esposa do, digamos, suspeito. Sentada ao fundo chora baixinho, com medo de atrapalhar. Os fatos haviam acontecido na tarde do dia anterior.Bom lembrar que aqui não impera o Código regente das leis. Nesta cidade quase no fim do mundo, apesar de distar alguns quilômetros da capital, o que vale é a vontade do delegado, do padre, do prefeito e do gerente do banco do Brasil. O delegado Francisco só esperou a chegada do advogado, que veio da capital, para dar continuidade ao caso. O vira lata já havia dado o veredito. O, digamos, suspeito matou o melhor amigo porque ele comia sua mulher. "Aquela gostosinha chorona", complementou.
                                  Delegado Francisco suspirou e desejou que o caso não fosse simples assim. Primeiro homicídio em tanto tempo o, digamos, suspeito confessando ter atirado e ainda por cima passional?
                                  Leu a papelada sobre a mesa. Há um silêncio sepulcral na sala,  entremeado com os suspiros de choro da mulher e a respiração ofegante de Marcão, incorporando o vira lata. Na verdade, a cena é proposital. Quanto mais acuado o inquerido mais vai falar.
                                 A história.
                                 Celso, o inquerido, veio para esta cidade com seu amigo Júlio e sua mulher Jussara. O objetivo era caçar patos selvagens comuns na região salpicada de pequenos lagos.
                                  Trabalham juntos em um supermercado na capital. Celso é gerente e Júlio o encarregado das compras. Bons salários e etc. Jussara é professora em uma escola para crianças. Tem curso superior e tudo o mais.
                                  Após intermináveis minutos o delegado Francisco ergue os olhos para Celso e pergunta com voz firme.
                                   "O que aconteceu"?
                                     Estava possuído por uma irritante certeza que Marcão, o sabujo, tinha razão. O barulho das teclas da máquina de escrever soava alto como um martelo na cabeça do interrogado. Por falar nisso, a letra "r" está com um problema e, muitas vezes fica presa. Souza diz que é proposital. Suspense é essencial num interrogatório. Na verdade disfarça sua preguiça em dar um jeito no teclado. Mais irritação.
                                  Celso, os olhos marejados fixando algum ponto no chão como a se agarrar na borda do precipício, começou a falar.
                                  "Pois é doutor. Soubemos que aqui tem muito pato selvagem e viemos caçar um pouco para distrair. As espingardas são legalizadas e a caça não é proibida. Chegamos de manhã bem cedo. Saímos eu e meu amigo e minha mulher ficou a espera no hotelzinho. Ela ficou de buscar a gente na porteira da fazenda onde fica o lago maior." Disse volvendo imperceptivelmente o corpo em direção à mulher que aumentou o volume do choro. Marcão olha para o delegado Francisco de soslaio, como a ter razão. Isso era irritante.
                                  Celso continuou. "De tarde com alguns patos presos na cintura vínhamos pelo caminho da porteira. Minha mulher esperava junto ao carro, como combinado. Júlio estava distraído olhando a relva e quando ergueu a cabeça disse",
                               "olha lá a vaca".
                                 "Porra doutor. Tá certo que minha relação com Jussara não é das melhores. Mas, é minha mulher! Sem pensar muito ergui a arma e disparei. Júlio caiu gemendo me olhando como a buscar explicação."
                                 O delegado Francisco suspirou. Marcão, o sabujo vira lata tinha razão. Souza grunhiu sem levantar a cabeça. Jussara aumentou o choro. Celso, com a voz ainda mais embargada disse num fio de voz.
                                 "Só aí que notei a vaca atrás do carro".

2 comentários:

  1. Muito bom!!! Luizão voltando à velha forma.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom!!! Luizão voltando à velha forma.

    ResponderExcluir