segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Pedaços no tempo

"Esta pizza, na minha lembrança, era melhor". Tive o mesmo pensamento nas duas últimas vezes em que estive naquele lugar. Entre estas ocasiões, três anos de intervalo que foram suficientes para que eu esquecesse que o pedaço de pizza não é, propriamente, ruim, mas talvez existam melhores.
Há três anos, foi depois da viagem, logo que ela chegou de Londres. Sentamos lá no fundo, no salão de baixo, e fui pedir embalagens para levar. A pizza pode não ser a melhor, mas seu pedaço é dos maiores. Se qualquer ingrediente estiver amargo, vai ser uma grande amargura pra levar pra casa.
Este ano iremos viajar também, para o mesmo lugar. Passamos na pizza, entretanto, antes do embarque. Acabávamos de comprar alguns mapas e guias, ela falava dos planos, livros, bibliotecas. Será o auge do inverno, haverá chuva, frio e cinza nostálgico. Não tem problema, contudo. Desta vez, vai ser igual para os dois, e haverá um pint de Old Speckled em cada pub.


domingo, 28 de dezembro de 2014

Que sorte a minha, de novo...


(...)

Momento 3:

Uma correria terrível, fui ao fórum com calça de corrida, camiseta e tênis, a roupa para ir ao show. Não consegui planejar direito a logística, quem dirá sacar os velhos discos de vinil para entrar no espírito.
A noção de que aquele era um momento para lá de especial só veio aos poucos, quando a ansiedade e a putidão pelo som ruim foram baixando. 
Da outra vez, fiquei encantado porque o disco de vinil era o mesmo, na mesma vitrola. Meu pai ouvia quando era moleque, depois ouvia com a minha mãe, e depois eu ouvia sozinho e, agora, ouço com a Daniela. A MC não tem vitrola, mas convenceu meu companheiro de equipe sueco a ouvir também. E todos sorriram muito.

#somostodosostrogodos

Ela entrou no quarto, animada. Avistou sobre a caixa de som feita de criado o mudo o volume sobre ensino e cultura na Idade Média. 
"Ah, eu adoro coisas medievais. Você joga RPG?" 
"Não, não jogo RPG, não. Você joga?"
"Ah, eu adoro!", respondeu inclinando-se para deitar quanto olhava para mim com as mãos atrás da cabeça, ajeitando os cabelos para que não se amassassem tanto sobre o travesseiro. 
"Eu nunca me interessei muito", disse eu, em pé ao lado da cama, folheando a introdução ao livro. 
"Ah, mas eu sempre fiquei entusiasmada com coisa de dragão, armadura, sabe? Desde pequena gostei da Idade Média". 
Virei-me para ligar o rádio. Sintonizei em uma estação qualquer enquanto procurava um disco na estante. Ela prosseguiu:
"É estranho você não gostar. Meus amigos adoram RPG e eles são muito cultos, professores de faculdade. Você precisa se levar menos a sério, daí você iria se divertir com estas coisas. E Tolkien? Dele você gosta?". 
"Então, todos falam bem, mas ainda não li nada. Ele não escreveu já no século XX?"
"Sim, é verdade. Mas é bem medieval", sentenciou.
Querendo cortar o assunto, perguntei:
"E o Boécio? Você já leu o Boécio? Agostinho? O pseudo-Dionísio Areopagita? Se você gosta de coisa medieval, deve ter lido estes caras, não?".
"Não, não. Não conheço". 
Ficou olhando para mim com olhar meio perdido. Imbecil.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Trintão

Era a última profecia do meu pai que se concretizava. Estava em um auditório, sentado nas fileiras, quando alguém tirou uma foto de cima para baixo, reproduzindo a vista de quem olhasse da platéia a bancada em que se realizavam as conferências. Aquele, de costas, era eu, sem dúvida. Eu estava careca.
Não se trata, todavia, de uma calvície plena e absoluta. Ainda há, no topo da cabeça, vestígios de cabelo e, com estes parcos fios e a necessidade de ajeitá-los todas as manhã, resta ainda a percepção de se ter cabelo.
As minhas entradas remetem aos tempos de juventude. Tinha ainda uns quinze anos quando meu cabelo deixou de ter toda aquela pujança. Naquele tempo, eu atribuía o fato a dois fatores: meu desejo de não ter cabelo, em vista das dificuldades de convivência social que ele me trazia, e a maldição do meu pai, que desde minha infância informava que eu ficaria míope, deveria tomar muita água - e, eventualmente, cerveja -, já que certamente seria agraciado com pedras no rim e, por último, a carequísse. "Seu avô é careca e quase todos os seus tios também. Tenho pouco cabelo e é provável que o perca todo", dizia ele. No fim, a profecia funcionou só para mim. Meu pai ainda exibe uma potencialidade de topete bastante invejável, fez cirurgia nos olhos para não ser mais míope e há muitos anos não tem pedra no rim - muitos mais anos do que eu.
Este "fantasma" me acompanha desde muito. A  calvície não surgiu com um golpe de surpresa. Ela já era esperada e percebê-la foi, na realidade, um alívio. Está aí, é o fim do meu ciclo cabeludo. Acabou a expectativa e eu não tenho mais que brigar contra a natureza.

* * *

Algo em torno de um mês e meio após a famigerada e reveladora foto - revelou grande parte do meu couro cabeludo -, fui correr de kart. Havia 20 pilotos na pista, mas a disputa pela vitória ficou restrita aos dois ponteiros. Larguei na pole, liderei todas as voltas e fiz a volta mais rápida. No entanto, a corrida não foi fácil, pois fui pressionado pelo segundo colocado que esteve muito perto e ameaçou ultrapassar durante todo o certame. Neste tipo de situação, eu costumava sentir a pressão, acabava errando e abandonava a disputa pela vitória. Não foi o que aconteceu desta última vez. Percebi que aprendi bastante com a experiência, soube aproveitar a vantagem que tinha e aguentei firme, a despeito de alguns "empurrões" do meu competidor. 
Quando paramos nos boxes e nos cumprimentamos, notei que meu adversário devia ter vinte e poucos anos. Era quase dez anos mais novo que eu, portanto. Trocamos algumas palavras cordiais e senti-me como uma espécie de Rubens Barrichello vencendo o G.P. da Europa de 2009 sobre Lewis Hamilton. Quer dizer, aquele rapaz tende a ser bem melhor que eu - claramente, ele treina seriamente e já anda há mais tempo -, mas ainda não é. 

* * *

"O que você vai querer para o seu aniversário?". Esta é a pergunta padrão da minha mãe, todos os anos. Minha resposta anual é não querer nada, mas, mesmo assim, sempre se organiza ao meu redor alguma comemoração.
A data do meu aniversário faz com que as pessoas que não são da minha família estejam indo ao encontro dos seus, enquanto que os meus parentes estão chegando para a comemoração do Natal. A sensação que tenho é de que querer comemorar o aniversário é uma forçação de barra, afinal, não faria sentido constranger as pessoas a estarem comigo. Eu só nasci e, neste ato, não há, rigorosamente, qualquer mérito meu. 
Neste ano, no entanto, parecia importante marcar a passagem da década. "Tenho que comemorar, não é? Trinta anos...". 
E, então, foram todos chegando: familiares queridos, os primos que cresceram comigo, amigos que vejo todas as semanas, amigos que almoçam comigo, outros que jantam, amigos que não via há anos, outros que expulsaram os fantasmas de casa, amigos que moram perto, outros que moram longe e, ainda, os pequenos amigos que percorreram seus primeiros trezentos e poucos quilômetros de estrada para me ajudar a cortar o bolo. Todas as presenças imensamente significativas em suas individualidades. 
Não sei bem como minha mãe conseguiu isso. Mais difícil que juntar este povo todo é fazer despertar uma sensação rara. Se estiveram todos aqui, minha vida tem sido mais que perder cabelos no caminho.