terça-feira, 1 de outubro de 2019

Sobre o que esperamos de nossos heróis

A Julianne Cerasoli fez um vídeo analisando por que os ingleses não torcem para o Lewis Hamilton na mesma proporção de seu grande sucesso na Fórmula-1. Achei muito interessante a opinião da jornalista-guru deste blog, mas fiquei pensando que não torço e nunca torci para o Hamilton - acho que nem mesmo contra o Alonso - e que isso não tem nada que ver com as razões expostas no vídeo, e nem têm relação direta com a admiração que nutro pelo piloto em questão. 
Evidentemente, sabemos o quanto o sujeito é bom de corrida, sabemos o quão bem sucedido ele é, mas o outro lado também é verdade: acompanhamos corridas e vimos pilotos suficientes para sabermos das (poucas) qualidades que ele não tem. Agora, torcida mesmo é algo muito pessoal. Por que torcemos para algum time de futebol em especial? Por causa do pai, tio, avô, primo, porque ganhou alguma campeonato de forma marcante quando tínhamos seis ou sete anos, etc. Ou será que, talvez, os times carreguem alguma mensagem que nos toca e gera identificação? 
No automobilismo, torce-se em regra para um piloto, não para um time, sendo a Ferrari, evidentemente, a exceção. Na Alemanha, ninguém liga muito para a Mercedes, a não ser quem trabalha para a marca. A torcida e a mídia se ligam mesmo no Vettel e no Hulkenberg. O piloto para quem torcemos, e não seu time, é quem carrega a mensagem com que nos identificamos. O piloto contra quem torcemos - os nossos Prosts, Schumachers, Alonsos - carregam a mensagem antagônica. Mas que mensagem é esta e quem verdadeiramente a propaga?
Chamou muito a minha atenção, após o GP da Rússia, o fato de que, até onde pude ler na mídia internacional, apenas a brasileira ter atribuído ao Vettel o papel de vilão na lambança organizada pela Ferrari - Vettel, aliás, foi escolhido "piloto do dia" por meio da votação da F-1 na internet. Chegou-se ao ponto de desmentirem com estatísticas o comentário de Vettel sobre os motores V12 após seu abandono, num desvirtuamento completo do sentido da reclamação do alemão: 


No outro lado da garagem vermelha, só há sorrisos e elogios ao "predestinado" Charles Leclerc. Isso me incomoda, me irrita mesmo, pelo reducionismo que implica e porque grande parte da história recente da F-1 fica soterrada pelo culto ao novo. Claramente, a situação na Ferrari parece extremamente complexa, especialmente desde a morte de Marchionne e Leclerc é um moleque muito esperto que tem sido muito bem orientado sobre como navegar dentro da equipe - lembrando que sua carreira é gerenciada por Nicolas Todt, vulgo Todtinho, filho de Jean Todt, atualmente presidente da FIA e antigo dono do botão vermelho da Mamã Ferrari. Seus choramingos e mimimis não são apenas de um menino minado, mas de quem sabe muito bem que, se pedir, ganha. 
Carlinho é, então, retratado como um prodígio que exige muito de si, que aprende muito rápido e a quem nada abala, nem a morte do pai, nem a morte de um de seus melhores amigos - ambos eventos que foram sucedidos por triunfos seus na pista. E, aqui, podemos voltar à mensagem que o piloto carrega e que transferimos a nós mesmos quando ela gera identificação. 
A história da morte do pai de Leclerc, seguida da vitória do filho no GP de Baku de F-2 em 2017, bem como de sua primeira vitória na F-1 em Spa-Francorchamps, após a morte do amigo Antoine Hubert na mesma pista no dia anterior, me fez lembrar do quanto fiquei abismado quando Michael Schumacher venceu o GP de Ímola de 2003 logo após a morte de sua mãe. Lembro de ter pensando, antes daquela corrida: "hoje este cara não vai ganhar. Talvez não vá nem correr". Correu e ganhou. Leclerc, tendo sabido do passamento do pai, concluiu que pouco mudaria caso ele deixasse de correr e que o pai gostaria que corresse. Correu e ganhou. 
O contraste com Vettel e com o próprio Hamilton é evidente. Lewis esteve a ponto de sucumbir, segundo boatos, após o rompimento com antiga Pussycat Doll Nicole Scherzinger. Fosse pelo motivo que fosse, Lewis bateu, rodou, andou mal pra burro. Lewis, como Sebastian, é humano
Para quem cresceu vendo Ayrton Senna como o modelo de piloto, seria fácil se encantar pela resiliência demonstrada por quem vê o pai ou a mãe falecer e, horas depois, arrisca o próprio pescoço para vencer uma corrida. No entanto, estas demonstrações têm implicações éticas importantes. A maneira como Schumacher se comportou ao longo de sua carreira demonstra que ele passaria por cima da morte da mãe e de qualquer coisa que se colocasse entre ele e o seu objetivo. 
Muito do sucesso no automobilismo se dá pela maneira como se ocupa espaço: espaço na equipe, espaço na pista. Ocupar espaço significa necessariamente, neste ambiente de competição, tirar o espaço de alguém. Evidentemente, isso é do jogo: ser o mais rápido não significava nada se há alguém na frente impedindo que a velocidade se desenvolva. No entanto, se se colocar no caminho do outro é parte do jogo, o jogo não admite todas as formas de atrapalhar o concorrente. Schumacher parou o carro na pista para Alonso não passar, arremessou o carro contra adversários, ganhando e perdendo, arremessou adversários para fora da pista, ganhou corrida sem cumprir a penalização que lhe havia sido cominada e a lista poderia ir facilmente madrugada adentro. 
O cinismo de Schumacher, como o de Leclerc, começou a aparecer muito cedo em sua carreira. Quem não se abala com nada pode ser um grande piloto, mas também pode ser um grande psicopata. Fico com a mensagem de quem se descabela com a perda de uma pussycat doll.

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