terça-feira, 16 de outubro de 2012

A cartilha

Narradores e comentaristas de competições esportivas, seja no rádio ou na TV, tem como missão, além de transmitir informações a respeito do evento, tornar um esporte, às vezes difícil de ser entendido, em algo que possa ser apreciado e digerido pelo público em geral. 
Não é tão fácil cumprir esta missão com o automobilismo. Embora os carros e capacetes coloridos, a alta velocidade, o perigo inerente à competição sejam atrativos naturais, não é um esporte fácil de fazer com que as pessoas se sintam nele insertas. Um jogo de futebol e uma luta de pancadaria são mais fáceis de sensibilizar o público: não há tanta dificuldade em sentir empatia por quem aplica ou recebe um golpe, ou marca ou defende um gol. 
Corridas de carros são mais difíceis de entender, precisam-se de setecentas câmeras para captar a pista toda e, principalmente, as reações do carro e do piloto não são necessariamente visíveis a olho nu. Este é um ponto complicado: se o jogador se esforça, corre mais que os outros, todos podem ver isso, sem dificuldade; se um cara apanha, apanha, apanha, mas não desiste, isso é um feito digno de nota e fácil de ser detectado pelo público; se o Usain Bolt corre pra cacete e chega muito antes dos outros, a gente pode falar do tênis, que a roupa é mais leve, etc, mas não interessa: o cara correu sozinho até a linha de chegada. Por isso, estes esportes tem uma face mais humana que pode faltar ao automobilismo. 
Assim, as transmissões aqui no Brasil - onde falta uma cultura automobilística, como se costuma dizer por ali e por aqui - tem fórmulas para suprir estas "deficiências" do esporte a motor. 
A primeira dificuldade é o próprio carro e o peso que tem no sucesso de um piloto. É comum ouvirmos a pergunta "o que conta mais? O carro ou o piloto?". Todos queremos crer que o piloto, o fator humano da competição, conta mais que fator mecânico, o carro. Explicar todos os aspectos da interação carro/piloto não é algo fácil de fazer, então, para encurtar o caminho até a humanização do esporte, elege-se um carro, uma equipe, e um piloto que fará as vezes de super humano a bater o poderio das máquinas. 
Vamos lembrar: as competições entre Schumacher e Hill, Schumacher e Villeneuve, Schumacher e Häkkinen e etc., nunca foram vistas como embates de pilotos, ou embate entre Ferrari contra Williams e McLarens. Ao contrário, sempre foi passada a imagem de que se tratava do talento de Schumacher contra a tecnologia mais avançada das demais equipes. Hoje em dia, o eleito como talentoso é, não coincidentemente o também piloto da Ferrari, Fernando Alfonso, a Prima Dona. 
A falsidade deste dado é evidente se olhamos o orçamento da Ferrari, a quantidade de testes que realizavam, principalmente na era Schumacher e os privilégios políticos que a equipe italiana tem e sempre teve. Mas precisamos de um herói humanizado e, temos assim, de tempos em tempos, algum eleito. 
Quando Vettel faz uma pole incrível, ele "mostra a força do carro Red Bull". Quando Alfonso, a Prima Dona, é avistado abrindo a porta do banheiro para se aliviar antes da corrida, é porque "tem mil coelhos na cartola". Do mesmo modo, quando o Häkkinen botava todo mundo no bolso, a McLaren tinha um carro incrível; se o Schumacher andasse bem, era por causa da superioridade de sua pilotagem. 
Mas, vejam só, o Schumacher voltou sem a Ferrari, sem um super carro, sem um companheiro de equipe capacho e não fez absolutamente nada em três anos. Como eu explico isso? Havia tanta babação em torno do talento infindável do nobre alemão que, agora, ficamos todos com cara de tacho ante suas medíocres performances. Ah, mas ele está se divertindo! Não precisa ganhar mais nada, já ganhou tudo e, agora, está se divertindo - não é o que ouvimos todas as vezes que alemão-mor aparece milagrosamente conseguindo manter o carro na pista? É uma mais uma frase pronta repetida à exaustão nos fins de semana de Fórmula-1. 
Essas fórmulas, que soam como grandes besteiras para quem acompanha corridas há duzentos anos, devem ter o mesmo efeito naqueles que narram e comentam as corridas pela emissora oficial. Eles sabem o que estão fazendo e tem consciência que não necessariamente o que dizem é verdade. Mas são fórmulas que procuram vender um produto a quem não acompanha ou não entende o esporte. É como um requintado prato de comida que provoca estranheza em quem vai, pela primeira vez, experimentar: aquilo pode ser uma maravilha para o paladar mais preparado, mas, para aliviar a descrença no sabor, eu posso jogar queijo por cima. E é isso que eles fazem: jogam queijo em um prato maravilhoso. 

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