sexta-feira, 26 de maio de 2017

CICATRIZES

Depois de décadas sem maiores atenções percebi uma marca do passado.
Cicatriz.
Ou, cicatrizes.
Todo macho que se preze tem cicatrizes a mostrar e vangloriar.
Descobri, no entanto, que as cicatrizes físicas tem prazo de validade. 
Ou seja. O corpo as absorve com o tempo. A não ser que sejam profundas. No corpo, ou na alma.
Até que ponto as cicatrizes físicas nos afetam vida afora/adentro?
Minhas primeiras cicatrizes físicas foram "obtidas" em Curitiba. Cidade muito em voga hoje em dia.
Morávamos numa vilinha no (hoje) bairro Bom Retiro e as casas de madeira eram edificações sobre pilares de concreto com vãos lives abaixo do piso "habitável".
Os vãos eram aproveitados das mais diversas formas. Galinheiros, depósitos fechados com tapumes e utilizados como guarda "qualquer coisa", ou como no caso dos Onofri "mundo hostil a ser explorado".
Sim. 
Meus pais não utilizavam o vão livre para nada. E, aquele lugar lúgubre era um lugar a ser explorado pela criançada em busca de fortes emoções.
Num belo dia lá fui eu a engatinhar pelo espaço inexplorado. Indo onde ninguém "ainda" foi.
O "porão" era baixo e tínhamos que engatinhar escuridão adentro.
E, lógico, o explorador encontrou um inimigo cortante. Restos de garrafas quebradas, certamente pelo antigo morador. Meu joelho esquerdo foi fulminado pelo inimigo que espreitava durante anos a fio.
Berrando feito um leitão de dona Gertrudes mal abatido corri para os braços de dona Alzira (mamã) que, sem dó nem piedade, jorrou cascatas e cachoeiras de água no meu joelho com o incentivo das broacas vizinhas que vieram correndo.
Meninos, depois de tantas décadas, ainda lembro da água escorrendo vremia como pintura das Ferraris, que já existiam. Lembro de meus berros e do semblante de dona Alzira significando "sei que dói mas, quem mandou engatinhar no "porão?"
Resultado. 
Cicatrizes. Meu joelho esquerdo virou um mapa em alto relevo da minha audácia infantil.
O preço a pagar pela busca do sei lá o quê naquele lugar desafiador com suas garrafas quebradas.
Mostrei durante anos a fio, orgulhosamente, o castigo por enfrentar o "tudo aquilo".
Adiantando o relógio da história, vamos para sampa.
Morávamos na periferia .
Lá na consagrada rua Djalma Forjaz.
Uma das brincadeira preferidas da petizada da época era o famoso "pique e esconde".
Numa dessas ocasiões, e da brincadeira noturna ( rock and roll, baby), corri para uma construção, crente que não seria descoberto.
Bom, construção também significa buracos no chão para os alicerces de concreto com aqueles "fios" de aço aparente,
Pois bem. O "tecladista" em questão correu construção adentro e num momento estarrecedor sentiu o chão sumir.
Lembrei do porão em Curitiba,
Uma dor do carai. Ou melhor, perto do carai.
Caí num desses buracos de alicerce com lâminas afiadas a esperar um panaca qualquer..
Berrei feito um bezerro desmamado sem ser amado.
Meus amigos de folguedo sumiram quando viram o sangue jorrar.
Corri para casa e, lógico, mamã Alzira jogou a famosa água "não benta" no meu corpinho.
Resumindo. O corte foi profundo na minha perna direita. Por muito pouco não sofri uma vasectomia sem anestesia. Dona Alzira não economizou na água, nos impropérios, e nas pragas, já que estraguei uma (única) calça comprida disponível no meu guarda-roupa. Não levaram o pobre menino para o hospital porque o estrago merecia uns pontos. Levei uns safanões e conselhos tipo "engole o choro".
Na mesma época, outra cicatriz foi resultado de uma remoção de gesso de um braço quebrado em Rib's. Morávamos em sampa e as férias com os primos malucos eram malucamente esperadas.
Resumindo: quebrei o braço direito em Rib's, fui retirar o gesso em sampa e, (óóó) os carinhas de Rib's não colocaram uma gaze entre o braço e o gesso. Resultado: queimaduras no braço, quando da retirada do gesso, com um aparelho feito aquelas serras de filme de terror. A maquininha não cortava a carne. O enfermeiro com cara de Jason passou a dita na própria mão para me convencer. Mas, queimava com o atrito. Quando Jason começou a cortar o gesso senti uma dor mistura de vidro e aço (lembranças dos cortes anteriores). Desandei a berrar e o enfermeiro junto com véio Mero ficaram tripudiando de minha masculinidade ao invés de prestar atenção na tortura. Até o momento em que removeram o gesso e viram o estrago/queimadura no meu braço. Ferimentos do lado interno e externo. Do punho até quase o ombro. Durante anos as cicatrizes fizeram sucesso com a mulherada. Contava vantagens em como resisti à dor e estava ali para contar a história.
Pois bem.
Depois de tantas décadas descobri algo que, no final, as cicatrizes foram absorvidas pelo corpo e quase não percebi. Significa que o lado espiritual dos acontecimentos ficaram no passado.
Hoje a única cicatriz que restou para contar a história, é um pedaço daquela da construção em sampa na minha perna direita. Foram três ferimentos. Resta a maior.
Tanto tempo vivido e começo a entender que as cicatrizes, físicas e espirituais, tendem a serem absorvidas. Deixam de ter a importância que tiveram.
É a vida que segue.


Post editado no dia 26 pela manhã, apesar da ressaca. Eh eh

Um comentário:

  1. Bom, seu texto é a mostra de que as cicatrizes espirituais nem sempre são tão bem absorvidas...

    Em tempo, esta história das queimaduras, narrada às vésperas de retirar o meu gesso do braço quebrado, levou-me a querer deixar o aparato ali mesmo para que não rasgassem meu braço todo. Doer, não doeu, mas que tremi nas bases, ah, tremi.

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