sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Graça

Em uma certa ocasião, Graciliano Ramos, um dos meus heróis literários, disse que a "palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro; a palavra foi feita para dizer".
É interessante notar que, a despeito de muito ter marcado minha vida - depois de ter sido eu tantas vezes Luís da Silva -, é provável que o grande romancista alagoano detestasse todas as besteiras por aqui escritas, já que escrevemos, geralmente, nem para dizer, nem para enfeitar.
Woody Allen, um dos meus heróis cinematográficos, recriou, em seu fantástico Meia noite em Paris, Ernest Hemingway e colocou na boca de seu personagem palavras que poderiam ser ditas pelo escritor em sua vida real. O Hemingway recriado faz observações interessantíssimas sobre a relação entre medo da morte, o amor e uma grande mulher - observações essas que viemos a descobrir serem profundamente verdadeiras.
Além das grandes mulheres, refere-se também aos grandes livros, atestando que nenhum assunto sobre o qual se escreva é terrível "se a história é verdadeira, a prosa é limpa e honesta e afirma coragem e graça sob pressão". Ah, coragem e graça sob pressão!
Seja para encadear palavras que dizem, no sentido graciliano, para apontar a direção bonita e corajosa da vida, ou, simplesmente, para provar que de beleza a vida não tem nada, existe algum impulso que nos leva a preencher a página vazia.
Ao pensar neste impulso ao longo destes dias, lembrei de um livro que li há pouco tempo. Livro impressionantemente bom, terminado em duas madrugadas de insônia e uma viagem a Ribeirão Preto. Comentei com a autora que achei o livro "exotérmico". Sei lá porque pensei nesta palavra, parecia encaixar bem com as características do texto, que se coloca do autor para fora, olhando o ambiente, as pessoas que o ocupam e etc. Claro que recebi o olhar de quem estava pensando "você é um ser humano severamente perturbado". E eu não poderia discordar.
Por aqui, acontece o contrário, acho. Tudo é endotérmico, relacionado a absorção, não do calor, mas do mundo, como o mundo está refletido dentro de nós mesmos. Entendimento da criatura sobre a criatura.
Ferreira Gullar, em artigo publicado pela Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, no último domingo (30 de outubro), referindo-se, justamente, ao impulso de escrever, disse que o poema quer nascer sem ter começo, e que, neste sentido, seria uma espécie de revelação. E, mais adiante, "além de o poema não dizer tudo o que o poeta deseja dizer, não sabe, ao começá-lo, o que vai dizer, porque, para sabê-lo, seria necessário que o poema já estivesse escrito. Assim, tudo o que há, então, é o desejo de dizer algo que o poeta não sabe o que será: está diante de uma página em branco e, portanto, aberto a todas as probabilidades".
Se, com a palavra, muitas vezes, nada queremos dizer - e Graciliano Ramos ficaria bravo -, se, ao começar o texto, nem se sabe o que se quer dizer, então de onde vem este impulso, sempre frequente em dias nublados?
Quando se senta diante do papel em branco - ou, pelo menos, quando eu sento diante do papel em branco -, o que se busca é a compreensão daquele mundo refletido, de um mundo de por quês sem respostas.
A folha em branco nada mais é que o convite à busca endotérmica da graça sob pressão. Senta-se, cala-se, concentra-se, e, no meio do silêncio, busca-se revelação. A esperança que existe em preencher a página vazia é preencher a si mesmo com algo que não se sabe o que é, mas que se procura encontrar em uma palavra desencontrada. Escrever pode, então, ser chamado de um ato de desespero. Ou, simplesmente, oração.

2 comentários:

  1. Motivo

    Eu canto porque o instante existe
    e a minha vida está completa.
    Não sou alegre nem sou triste:
    sou poeta.

    Irmão das coisas fugidias,
    não sinto gozo nem tormento.
    Atravesso noites e dias
    no vento.

    Se desmorono ou se edifico,
    se permaneço ou me desfaço,
    - não sei, não sei. Não sei se fico
    ou passo.

    Sei que canto. E a canção é tudo.
    Tem sangue eterno a asa ritmada.
    E um dia sei que estarei mudo:
    - mais nada.

    Cecília Meireles

    Causa e motivo, doutores? ;)

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  2. Ferreira Gullar é o cara.
    Houve um tempo em que eu escrevia desesperadamente. Outro, apaixonadamente.
    E, sempre comecei com um impulso e a mão solta.
    Não sabia o rumo nem o fim.
    Mas, sabia que escrever é preciso.

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