domingo, 6 de novembro de 2011

Conversa de velório

Um dia muito quente. Vamos entrando no recinto e vão surgindo rostos de que já não nos lembramos ou que nunca conhecemos.
Eles se cumprimentam, nos cumprimentam, e passam.
São tantas pessoas. Qual a relação entre todas elas? Elas têm alguma relação? Qual a relação delas comigo?
Há muito tempo não a visitava. Há uns dez anos, visitava toda semana, religiosamente. Nos últimos anos, no entanto, desde que minha avó mudou de lá, pouco visitei. Aquela casa...

_ Nossa, como você está... diferente
_ Ah, sim, sim.
_ Quando te vi a última vez - provavelmente em algum outro velório - você era tão... pequeno.

Aquela casa era tão bonita, mas ao mesmo tempo tão vazia. Ainda que vazia, não era triste, porque estavam sempre ali pessoas que visitavam com tanto gosto. E havia tantas fotos também, todos os possíveis filhos, sobrinhos, netos, todos tinham um lugarzinho no mural. E todos tinham um lugarzinho em suas vidas para visitar...

_ Deve ser caro um velório aqui.
_Hum?
_Desde que inauguraram esta parte nova. O outro lá ninguém quer mais. Tá vendo? Tem até quartos se as pessoas quiserem dormir.

Teve uma ocasião que passei uma semana - ou talvez menos, uns dois ou três dias - entre o Natal e o Ano Novo naquela casa. Tinha ganhado um modelo, um Constelation, que avião lindo. Viajava para a Europa guiado por astrolábio, um cara ia olhando o céu através de uma corcunda na fuselagem. Montei o modelo naqueles dias que passei na casa. Minha avó ainda morava lá. Ficou todo sujo, manchado por causa do jornal que usava para forrar a mesa...

_ Ane.
_ Hã?
_ O nome da mãe daquela moça é Ane.
_ Hum, entendi.
_ Então, o cara era barrigudinho, mas muito bom de bola. Tomamos um cacete...

Ficava impressionado com o tamanho da casa e ela ali, meio sozinha. Tão sozinha e, ao mesmo tempo, tão animada, como se a casa fosse uma espécie de santuário, cheio de lembranças que não a deixavam só. E tinha sempre visita - quando eu visitava, sempre tinha gente a visitar. Eu lembro daquela moça. A última vez que a vi, ela não me reconheceu, como agora.
E tinha um jardim nos fundos. Para chegar até ele, era preciso subir uma escada. Atravessava-se a cozinha, tomava-se a porta à esquerda. À direita da porta, ficava a escada. Subia-se, ia-se em frente, passava-se pela área de serviço e um misterioso quartinho - que só abrigava produtos de limpeza -, e chegava-se ao jardim, com grama bem aparada, vistosas roseiras e coqueiros lá no fundo. Muitas vezes, me perguntei há quanto tempo ela não via aquele jardim e como era possível que ele continuasse tão bonito. Há quanto tempo ela não podia subir as escadas? Ah, muitos anos, muitos anos. Há dez anos, quando visitava semanalmente, já não era possível para ela...

_ Sua namorada é alta ou é baixa?
_ Não, não estou namorando ninguém.
_ Como não?
_ Não, não estou.
_ Ah, mas você precisa arrumar uma namorada. Quanto mais velho você for ficando, vai ser pior, vai ficando mais difícil e...

Eu chegava a me impressionar com a ideia de alguém não poder visitar certa região da própria casa. Como seria? Não seria triste? Eu acho que seria triste. Mas, ao mesmo tempo, a lembrança daquela mulher ali, sentada, com seu crochê e o sorriso fácil, faz parecer que era a coisa mais natural do mundo. Não fazia falta a vista daquele jardim? Será que alguém a levou lá alguma outra vez? Será que as lembranças bastavam? Se eu tivesse visitado mais, talvez soubesse as respostas.
Nunca vou saber. Vou, entretanto, ter sempre a lembrança da serenidade e o sorriso fácil daquela mulher que, sentada com seu crochê, lidou com tudo sem nunca, nunca, lamentar não poder ir até o próprio jardim e, com o sorriso fácil, preencheu todo vazio daquela casa grande.

2 comentários:

  1. Assim a vida nos afeiçoa


    Se fosse dor tudo na vida,

    Seria a morte o sumo bem.

    Libertadora apetecida,

    A alma dir-lhe-ia, ansiosa: - Vem!

    ...

    E a vida vai tecendo laços,

    Quase impossíveis de romper:

    Tudo que amamos são pedaços

    vivos de nosso próprio ser



    A vida assim nos afeiçoa,

    Prende. Antes fosse toda fel!

    Que ao mostrar às vezes boa,

    Ela requinta em ser cruel...


    Manu Bandeira

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  2. Tia Norma: uma das pessoas mais especiais que pudemos conhecer. Serena sempre, dona de um sorriso despretensioso que se abria acompanhado de doces palavras. A sua casa, de fato muito grande, guardava as lembranças de quem lá viveu por quase toda a vida e também de todos nós que na infância brincávamos naquele jardim. Resta a esperança de algum dia nos reencontrarmos ... Por ora, o que mais quero é minimamente seguir os seus passos ...

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