quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Tradução

Existe aquele velho dito italiano, repetido à exaustão mesmo por nós, que não falamos italiano: tradutore, traditore. Acreditando nisso, há um tempo atrás, resolvi eliminar esse tipo de gente da minha vida, os tais tradutores. Nunca mais li uma tradução do inglês para o português, aprendi na marra a decifrar os textos italianos e um pouco dos franceses, voltei a estudar alemão e latim. A ideia era mesmo exterminar esses malditos intermediários entre o texto e o entendimento - ou desentendimento.
Mas vejam, os senhores, como o mundo dá voltas. No meio tempo entre a absoluta revolta traducionista e hoje, aconteceram coisas interessantes. Li um livro, que me levou a ler outro e mais outro, até que cheguei no Josef Pieper, já mencionado por aqui. Não li Pieper no alemão, tive que buscar as traduções para o inglês e espanhol.
O filósofo, conhecedor que é das coisas medievais, contou para mim a história do Boécio, que ele mesmo chama de "grande tradutor". Boécio teve um papel importante como mediador na transição entre o mundo antigo, e as reminiscências da cultura clássica greco-romana, para o novo ambiente medieval, dominado pelos bárbaros. Se esse cara não tivesse dado um duro danado como um dos fundadores da tradição escolar, os Godos não teriam entendido nada da cultura que os antecedeu.
E tem mais. Boécio cunhou, a partir de uma tradução do grego, uma das palavras mais caras aos cultures do direito: principium. Arché - conceito essencial na filosofia -, em grego, dá ideia de origem e, ao mesmo tempo, de regra. Obviamente, a palavra principium já existia em latim, mas o sentido dual em coordenação com arché só veio depois do grande tradutor Boécio. E o que é o princípio jurídico, assentado onde quer que esteja, senão origem e imposição normativa? Preciso, esse Boécio.
Então, por essas e por outras, não estou mais bravo com os tradutores. Na verdade, graças a eles - ou, pelo menos, a uns dois ou três deles -, uma profunda conexão pôde se estabelecer entre a cultura clássica e a cultura bárbara. Sim, dos bárbaros e barbaras. E outra profundas conexões se estabeleceram depois.
Viva o Pieper, viva Boécio. E viva os tradutores!

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