sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Trintão

Era a última profecia do meu pai que se concretizava. Estava em um auditório, sentado nas fileiras, quando alguém tirou uma foto de cima para baixo, reproduzindo a vista de quem olhasse da platéia a bancada em que se realizavam as conferências. Aquele, de costas, era eu, sem dúvida. Eu estava careca.
Não se trata, todavia, de uma calvície plena e absoluta. Ainda há, no topo da cabeça, vestígios de cabelo e, com estes parcos fios e a necessidade de ajeitá-los todas as manhã, resta ainda a percepção de se ter cabelo.
As minhas entradas remetem aos tempos de juventude. Tinha ainda uns quinze anos quando meu cabelo deixou de ter toda aquela pujança. Naquele tempo, eu atribuía o fato a dois fatores: meu desejo de não ter cabelo, em vista das dificuldades de convivência social que ele me trazia, e a maldição do meu pai, que desde minha infância informava que eu ficaria míope, deveria tomar muita água - e, eventualmente, cerveja -, já que certamente seria agraciado com pedras no rim e, por último, a carequísse. "Seu avô é careca e quase todos os seus tios também. Tenho pouco cabelo e é provável que o perca todo", dizia ele. No fim, a profecia funcionou só para mim. Meu pai ainda exibe uma potencialidade de topete bastante invejável, fez cirurgia nos olhos para não ser mais míope e há muitos anos não tem pedra no rim - muitos mais anos do que eu.
Este "fantasma" me acompanha desde muito. A  calvície não surgiu com um golpe de surpresa. Ela já era esperada e percebê-la foi, na realidade, um alívio. Está aí, é o fim do meu ciclo cabeludo. Acabou a expectativa e eu não tenho mais que brigar contra a natureza.

* * *

Algo em torno de um mês e meio após a famigerada e reveladora foto - revelou grande parte do meu couro cabeludo -, fui correr de kart. Havia 20 pilotos na pista, mas a disputa pela vitória ficou restrita aos dois ponteiros. Larguei na pole, liderei todas as voltas e fiz a volta mais rápida. No entanto, a corrida não foi fácil, pois fui pressionado pelo segundo colocado que esteve muito perto e ameaçou ultrapassar durante todo o certame. Neste tipo de situação, eu costumava sentir a pressão, acabava errando e abandonava a disputa pela vitória. Não foi o que aconteceu desta última vez. Percebi que aprendi bastante com a experiência, soube aproveitar a vantagem que tinha e aguentei firme, a despeito de alguns "empurrões" do meu competidor. 
Quando paramos nos boxes e nos cumprimentamos, notei que meu adversário devia ter vinte e poucos anos. Era quase dez anos mais novo que eu, portanto. Trocamos algumas palavras cordiais e senti-me como uma espécie de Rubens Barrichello vencendo o G.P. da Europa de 2009 sobre Lewis Hamilton. Quer dizer, aquele rapaz tende a ser bem melhor que eu - claramente, ele treina seriamente e já anda há mais tempo -, mas ainda não é. 

* * *

"O que você vai querer para o seu aniversário?". Esta é a pergunta padrão da minha mãe, todos os anos. Minha resposta anual é não querer nada, mas, mesmo assim, sempre se organiza ao meu redor alguma comemoração.
A data do meu aniversário faz com que as pessoas que não são da minha família estejam indo ao encontro dos seus, enquanto que os meus parentes estão chegando para a comemoração do Natal. A sensação que tenho é de que querer comemorar o aniversário é uma forçação de barra, afinal, não faria sentido constranger as pessoas a estarem comigo. Eu só nasci e, neste ato, não há, rigorosamente, qualquer mérito meu. 
Neste ano, no entanto, parecia importante marcar a passagem da década. "Tenho que comemorar, não é? Trinta anos...". 
E, então, foram todos chegando: familiares queridos, os primos que cresceram comigo, amigos que vejo todas as semanas, amigos que almoçam comigo, outros que jantam, amigos que não via há anos, outros que expulsaram os fantasmas de casa, amigos que moram perto, outros que moram longe e, ainda, os pequenos amigos que percorreram seus primeiros trezentos e poucos quilômetros de estrada para me ajudar a cortar o bolo. Todas as presenças imensamente significativas em suas individualidades. 
Não sei bem como minha mãe conseguiu isso. Mais difícil que juntar este povo todo é fazer despertar uma sensação rara. Se estiveram todos aqui, minha vida tem sido mais que perder cabelos no caminho.  

3 comentários:

  1. - Aliás, quem ganhou a corrida?

    Mandei pro Fernando o vídeo que seu pai me enviou. Ele está processando um relatório da vida pregressa de todos os presentes com excesso de pelos faciais. Ainda bem que não fui (sorry! ;)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tomara que ninguém com excesso de pelos faciais leia este comentário e passe a te odiar e estudar sua vida pregressa sem nem saber quem você é...

      Excluir
  2. É verdade, já fui jovem e meu coração era um livro aberto.
    Mas esse mundo de mudanças em que vivemos nos faz aprender a por as barbas de molho, e jogá-las debaixo do tapete, enquanto desviamos a atenção para as alheias.
    Mas tem quem assuma os pelos faciais e fique parecido com o Alcides, outros lembram o Brad Pitt...
    Enfim, a ideia foi do Fernando, não minha, até porque essa história de ficar ouvindo The Who faz meu bigode crescer da noite pro dia
    XP
    Ótima viagem pra vocês dois!

    ResponderExcluir