sábado, 24 de agosto de 2013

Na presença de inimigos

Dia desses, dirigia o carro saindo de um trabalho e rumando a outro, sentindo-me mal porque estava perdendo tempo não trabalhando enquanto dirigia. É uma situação comum na grande cidade, a pessoa parada no trânsito, outros motoristas buzinam e a gente não entende a razão, os ruídos em volta incomodam e até a mocinha que fala no rádio passa a ser um pé. Eu não entendo, mas todas as moças da rádio hoje tem a mesma voz. Olhei, então, ao redor e me vi naquela bolha de aço e vidro. Em minha companhia, apenas uma pasta, a sacolinha com lixo transbordando pendurada na alavanca de câmbio e os demais bancos vazios. Ah, sim, e a voz da moça do rádio que me tirava a concentração anunciando que havia congestionamento recorde em todos os lugares por onde passam carros no mundo. E o resto do mundo, lá fora. 
Pensei, então, nas ordens mendicantes e na interessante concepção de "cela interior", a ideia de que os monges devem estar no ambiente urbano - no "burburinho da cidade" -, convivendo com todos e com todos os problemas, sem abrir mão, no entanto, da oração. Assim, o isolamento e contemplação não decorreriam do afastamento das questões mundanas, mas da concentração em deus, a despeito dos convites das distrações citadinas. 
Dentro do automóvel - uma cela móvel -, dirigia enquanto não trabalhava. Aliás, havia já realizado um trabalho que não queria ter realizado e rumava para outro que queria menos. Enquanto trabalhava, não podia ler, estudar ou escrever, logo, não podia desenvolver nada. Ainda, o trânsito, maldito, atravancando o caminho, o motoqueiro sem juízo que quase cai sobre o carro, o motorista sem educação que acha que tem mais direito de passar que os outros. 
Profundo descontentamento. Era isso. Profundo descontentamento com a vida. Se me perguntarem o que sinto e eu disser algo diferente de ansiedade e cansaço estou mentindo. O tempo todo, ansiedade, aquela que turva a visão. 
É um velho conhecido este estado de espírito, ainda antes que o relógio bata meio dia. É terrível se perceber assim e ali no carro, impaciente, olhando em volta, buscando uma esperança de que, em algum momento, os veículos à minha frente se moveriam, lembrei que não precisava dirigir antes e que talvez fosse mais feliz naquele tempo em que circulava de ônibus ou metrô. Ou não, na verdade, não era o carro, mas o emprego novo. Sim, o emprego novo, é ele que me deixa assim. Mas, talvez o emprego não incomodasse se não tivesse o doutorado. Quem sabe tenha a ver com o doutorado, a gente se sente sempre atrasado quando tem coisa para escrever. Mas, espera aí: o doutorado só começa no próximo ano. Então só pode ser o escritório; é isso mesmo, é muita responsabilidade para uma pessoa só. E estes protestos também. Colocaram fogo na frente de casa e eu tive que parar de ler um livro importante para a tese, agora está tudo atrasado. É certo que não vou dar conta, não vou dar conta. Às vezes, tenho vontade de fumar. 
Enquanto aquela corrente de pensamentos fluía, provocando até uma assimetria no tempo verbal do texto escrito tanto tempo depois, senti inveja dos que portam consigo a cela interior, que impede que os influxos externos os tirem da rota de suas convicções. Eles sabem que o problema é um só e a solução está na cela. 
A moça do rádio - ou outra com a mesma voz - continuava a anunciar que crescia em trezentos e setenta e dois por cento a incidência do crime "entradinha de funerária" e que o monotrilho nunca ficará pronto. Desliguei o rádio e pus-me pensar no porquê de um cigarro. 

2 comentários:

  1. isso daria o início de um bom livro. Estou curioso para ver o que acontece depois.

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  2. Minha mãe no rádio não soa como as outras (dizem que soa como eu, mas o piá que me ouve diz que sou irreconhecivel no ar, então nem sei mais quem parece quem). Mas fala de ceia interior.

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