sábado, 2 de maio de 2009

1º de Maio.

Desde muito menino fui acostumado a levantar cedo nos domingos em que havia corrida de Formula-1. Tal costume herdei de meu pai, que se encantou pelo automobilismo logo no início dos anos 70, e recebeu um grande estímulo quando o Emerson Fittipaldi foi para lá, vencer corridas e o campeonato.

Segundo meu pai, comecei a assistir corridas muito cedo. Talvez seja um exagero dele dizer que foi com uns dois anos de idade. É um fato difícil de ser comprovado e, é claro, é difícil que eu me lembre. De qualquer forma, há muitas fotos em casa de um garoto de fraudas com revistas “Grid”, “Quatro Rodas” em mãos, admirando os carrinhos coloridos.

É óbvio que, se meu pai recebeu estímulo do Emerson para acompanhar religiosamente a Formula-1, para mim tal estímulo veio, como não poderia deixar de ser pela minha idade, de Ayrton Senna.

É claro que vi Piquet correr, vencer e até ser campeão. Mas era muito pequeno e minhas lembranças não chegam tão longe. Hoje em dia, tenho uma admiração tardia por Nelson Piquet, pois, com as facilidades da internet, pude ver uma porção de corridas dele, assim como as de Emerson, e assim perceber que admiráveis pilotos eles eram.

A partir de 1989, minhas lembranças já são muitas, e estão muito ligadas ao Senna. A transmissora oficial da Formula-1 no Brasil tem um papel nisso. A música, a narração emocionada do locutor, por Deus, não tem como não influenciar uma criança! E uma criança eu era.

Meu pai que, hoje eu sei, torceu contra o Senna no começo, a favor de Piquet, com o tempo foi envolvido e convencido de que o homem de capacete amarelo era bom mesmo, e não apenas mais um doido. Então, é claro que, além da transmissora oficial, tem um papel importante meu pai para que eu gostasse do rapaz.

Mas o certo é que, naqueles primeiros anos da minha vida, era quase inconcebível não acordar para assistir uma corrida. Bom, digo “era” inconcebível por força de expressão, porque, hoje em dia, é pior ainda. Naquele tempo, pelo menos, eu não tinha autorização para assistir às corridas de madrugada...

Aliás, na minha vida toda, eu me lembro de ter deixado de assistir apenas a umas três ou quatro corridas inteiras, por uma razão ou outra. Curiosamente, o GP de Ímola de 1994 foi uma dessas.

Cresci no seio de uma família católica que, embora não praticante, fez com que fosse cursar o catecismo. E lá ia eu, tinha aulinhas, tarefa de casa, leituras e etc. Mas eu nunca ia à missa. Minha família não tinha o hábito, eu, igualmente, não o criei. Em verdade, acho que ia ao catecismo porque me sentia obrigado, quase como ir à escola. E eu nunca ia à missa.

Naquela semana, contudo, a professorinha da catequese disse que quem não fosse ao culto seria expulso! A missa que eu deveria ir começaria, justamente, às nove da manhã de domingo... quer dizer, eu perderia pelo menos metade da corrida.

É claro que não fiquei contente. Perder a corrida já tinha, apesar da pouca idade, um caráter cruel para mim. Por outro lado, eu não queria ser expulso da catequese, vai saber o que Deus viria a achar de mim...

Não assisti aos treinos de sexta-feira. Eles não eram transmitidos pela Globo, com exceção dos treinos para o GP do Brasil. Vi no jornal, depois da escola (eu estudava à tarde), a pancada do Barrichello. Só hoje me dou conta do quanto estivemos próximos de ter três mortes e não duas naquele fim de semana.

Sábado de manhã lá estava eu de pé! Não perderia o treino por nada! Seria a terceira pole do Senna no ano! Não poderia ser diferente, afinal ele estava de Williams! Também só hoje me dou conta de que a Williams do Senna não era como a do Prost ou a do Mansell e que a vida dele não seria tão fácil naquele ano. Eu não me lembro de ter total consciência do regulamento. Para mim, a extinção da suspensão ativa e o (re) início dos reabastecimentos (que eu nunca tinha vista na F-1) eram as grandes novidades. De qualquer modo, a pole seria, sim, do Senna.

Mas, a certa altura, veio a porrada do Roland Ratzenberger. Eu nunca havia visto aquilo. A cabeça que pendia, o monocoque rachado, o braço do piloto para fora... isso era só o impacto visual inicial. Pior seria ver o piloto estendido no chão, aquele movimento de pressionar o peito... só lembro de meu pai dizendo embasbacado: “é massagem cardíaca”.

A partir daí o fim de semana ficou muito triste, com aquele sentimento carregado, pesado, no ar. É engraçado que algumas corridas trazem consigo aquela sensação de “a bruxa está solta”. Aquele GP de Ímola estava assim. Outros também carregaram essa sensação – como o GP de Monza de 2000, em que faleceu um fiscal de pista após o mega-acidente após a largada –, mas sem que a gravidade dos acontecimentos chegasse ao nível de Ímola 1994.

E no domingo haveria a corrida que eu estava pré-destinado a não ver por causa da missa. Acordei cedo, caminhei sozinho até a igreja. Um domingo de sol bonito numa cidadezinha no interior de São Paulo.

Voltei para casa caminhando, também sozinho. Entrei pela sala, e vi que a corrida estava rolando. Minha mãe e minha avó estavam com meu pai, o que não era lá muito comum, pois elas normalmente assistiam apenas à largada e voltavam na hora da bandeirada, caso o Senna fosse vencer. Antes mesmo de olhar para a tevê, perguntei ao meu pai: “e aí? Como está o Senna?” Claro que eu me referia a como estava o Senna na corrida, qual a sua posição. Veio a resposta: “Vixi, meu... o Senna bateu e está mal no hospital”. Meu primeiro pensamento foi de frustração, porque se havia batido não ganharia a corrida. Mas ele estava no hospital! Bom, deveria sair logo.

Só comecei a ter dimensão da gravidade da coisa quando fui notando a expressão do meu pai, da minha mãe, o tom de voz do locutor oficial, aquele podium meio estranho. Depois do fim da corrida, ao longo de toda a tarde, já era claro para mim que ele não havia sobrevivido. Não era necessário anúncio qualquer. As imagens da batida, que pude ver então, já eram eloqüentes. Os comissários que não foram falar com o piloto, como de costume, o socorro que tardou, o sangue no chão, a massagem cardíaca. Não tinha jeito, estava morto.

E então a missa a que eu não queria ir me poupou de ver a morte de meu ídolo. Para mim, era o piloto fantástico, o cara carismático, cheio de virtudes, que só hoje posso saber que talvez não fossem tantas assim. Mas essa mitigação do esplendor da imagem que tinha dele naquela época não apagaram a qualidade de ídolo. Afinal, cresci assistindo suas vitórias, ao lado de meu pai, com a narração emocionada do locutor oficial e, no final, aquela musiquinha tão marcante.

Foi essa, enfim, a curiosa história de uma daquelas três ou quatro corridas da minha vida a que não assisti por inteiro. Aliás, essa falta foi suprida apenas no começo deste ano, quando pude assistir a corrida toda, com o auxílio da internet.

De todas essas três ou quatro corridas, Ímola 1994 é a única que não me fez falta alguma. Pelo contrário, sou extremamente grato àquela ameaça de expulsão da catequese que me fez ir à igreja naquela manhã.

Aquele domingo poderia ter mudado minha vida: era eu um menino de 9 anos diante da morte de seu super-herói. E não era nos quadrinhos. O que aconteceria depois? Não assistiria mais à Formula-1? Meu pai não me acordaria mais para ver corridas? Nada disso. Exatamente o contrário. Depois daquele ano, que foi terrível, cheio de histórias mal contadas, e um fim muito feio, minha paixão por corridas só cresceu. Primeiro com a torcida por Damon Hill, depois com Mika Hakkinen, sempre com o Barrichello, a torcida contra o Schumacher – você, eventual leitor, não imagina quanto sofrimento não era torcer contra o Schumacher! Mas, sobretudo, meu entusiasmo por automobilismo começou por causa do homem que se sentava, e senta até hoje, ao meu lado no sofá. Talvez aquele menino de 9 anos não tivesse continuado a assistir Formula-1 se não fosse por aquele homem que sempre o acordava, que o ensinou a se entusiasmar com os carrinhos coloridos desde o berço. Talvez o mais importante de tudo não fosse o Senna e suas vitórias, mas justamente aquele homem ao meu lado.

Hoje já não moramos na mesma cidade, mas viajo sempre que posso para assistir às corridas com ele. Hoje já não torcemos pelo mesmo piloto. Curioso que ele continua gostando de um que corre de McLaren e de capacete amarelo... Torcer por pilotos diferentes traz algumas desavenças, mas que sempre são rapidamente desfeitas. Ambos sabemos que sentar lado a lado no sofá nos domingos de manhã, comentar mais a corrida do que o locutor oficial, acordar minha mãe falando mais alto do que devíamos, tudo isso permeia nossa relação e a torna mais bonita a cada corrida. E ambos sabemos como tudo isso começou, lá atrás, na torcida pelo capacete amarelo a bordo da McLaren vermelha e branca...

Nenhum comentário:

Postar um comentário