Ela veio de Porto Alegre por avião. Pousou em Guarulhos e deve ter sido arranjado um serviço especializado para levá-la ao nosso apartamento - morávamos, então, na rua Frei Caneca. Desci à portaria quando a chegada foi anunciada pelo interfone.
Minhas tentativas de possuir uma como aquela já vinham
de anos. A última delas, depois de ter recebido algum dinheiro como presente de
aniversário da minha avó, resumiu-se a duas montadas curtas antes que um
ex-namorado da minha irmã - coincidentemente ou não, também um ex-amigo meu -
tentar uma intervenção e, como consequência, levá-la definitivamente ao óbito.
Estou disposto a admitir que a referida intervenção
fosse necessária, mas talvez não suficiente para salvá-la. Entrando de
improviso em uma oficina, perguntei: “o senhor vende também usada?”. Ao que me
foi respondido: “tenho estas duas aqui”. Consultei o preço e, calculando o
dinheiro que tinha no bolso questionei, atipicamente: “o senhor não faz por R$80?”.
Até hoje, lembro-me bem da expressão facial daquele
homem que cogitava gravemente sobre minha proposta. Uma meditação tão profunda
não é comum entre os comerciantes, dispostos a descartar prontamente o que não
maximize seu ganho. O adiamento da negativa me deu esperanças de que o negócio
fosse fechado, como de fato foi. Minha alegria, no entanto, impediu-me de perceber
que, por valor tão irrisório, ela não durasse, como não durou, mais que duas
vezes e uma intervenção.
Minha irmã foi protagonista, ainda, de uma outra experiência
traumática. Antes da minha aventura no mundo dos negócios para aquisição de um
exemplar não apenas usado, como também consumido pelo tempo por 80 reais, houve um
longo período em que não tive bicicleta. Compartilhava, então, justamente,
a de propriedade da minha irmã em um acordo que não impunha muitas condições restritivas.
Uma das poucas referia-se ao âmbito geográfico em que era permitido o uso do
equipamento: ir até a Última Rua do bairro estava fora de questão.
A Última Rua conotava uma espécie de linha de
segurança entre nosso mundo e o desconhecido. Nela, localizava-se a igreja da
Paróquia de São Judas Tadeu, mas o que se via depois dali era um imenso espaço
preenchido apenas por mato mal cortado e árvores rarefeitas.
Todos tínhamos respeito por aquela fronteira simbólica,
mas o cumprimento do arranjo estipulado com minha irmã tornou-se difícil quando
se descobriu uma trilha que passava por um terreno baldio além da Última Rua. A
trilha permitia um mergulho pavoroso e veloz em um universo desconhecido. Secretamente,
percorri o caminho algumas vezes e, como a trilha tornara-se um frisson na
rua em que morávamos, e as experiências nela vividas eram debatidas
abertamente, minha irmã já desconfiava que eu guiava ilegalmente por aquelas
bandas.
A trilha passava pelo mato, desembocando novamente no
bairro por uma rua atrás da igreja. Numa certa ocasião, ao deixar o caminho de
terra e iniciar o trajeto na área asfaltada atrás da igreja, notei a presença
de um homem que me olhava fixamente, andando no sentido oposto ao meu. Tentei
desviar, mas ele me cercou. Não pensei, ou não tive coragem, de correr na
direção contrária. A única coisa que me ocorreu foi a cogitação de que o homem
quereria roubar o boné que eu trajava - um boné falsificado com o emblema dos
Chicago Bulls, a que eu atribuí um valor muito maior que ao da bicicleta.
“Baixim, desce da bicicleta, tô com um revólver aqui”.
Até hoje, minha irmã não me perdoou.
(a inspiração para esse texto está aqui e a sua continuação, por vir)
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